sábado, dezembro 20, 2025

Salomé por trás da arte

Se você tem mais de 40 anos, provavelmente se lembra de uma personagem criada por Chico Anysio: Salomé Maria da Anunciação, mais conhecida como Salomé do Passo Fundo. Para quem não se recorda, Salomé ligava para políticos e pessoas influentes assumindo um curioso ar de intimidade com o poder, comentando fatos do cotidiano político de forma ácida, irônica e extremamente crítica.


O personagem mais citado na época de sua criação, no final dos anos 1970, foi João Baptista de Oliveira Figueiredo, então presidente do Brasil. Com ele, Salomé aparentava uma intimidade ainda maior: chamava-o de “guri”, de “João” e dizia ter sido sua professora.

O cenário político daquele período era de uma abertura lenta, gradual e ainda trêmula. O presidente parecia precisar de um “empurrãozinho” para avançar em medidas como o fim dos Atos Institucionais, a Lei da Anistia e outras reformas que colocariam fim a mais de vinte anos de ditadura. Ainda havia censura nos meios de comunicação. Nesse contexto repressivo, o público se surpreendia com a liberdade de Salomé para criticar o governo. O humor funcionava de forma indireta e simbólica, permitindo leituras sociais que o confronto direto não permitiria.

Diferente do que se poderia esperar de um regime militar, Figueiredo recebeu a sátira com entusiasmo, chegando a convidar Chico Anysio para uma apresentação no Palácio do Planalto, em dezembro de 1979.

Figueiredo talvez na foto mais clássica do fotojornalismo brasileiro

A inspiração para a personagem parece ter vindo de Djanira de Oliveira Lângaro, viúva de um ex-político gaúcho. No passado, Djanira fora considerada uma mulher belíssima: foi eleita Rainha do Carnaval em 1919 e A Mais Bela Gaúcha dos Pampas em 1923. Tinha o hábito de ligar para políticos influentes, governadores e até presidentes, mantendo com eles uma relação peculiar.


Djanira num carro alegórico do carnaval num desfile em Passo Fundo

À esquerda, Djanira Lângaro. À direita, Chico Anysio caracterizado como Salomé (1979).

Do ponto de vista psicológico, o arquétipo criado por Chico Anysio se aproxima de um narcisismo defensivo (exatamente como o presidente parecia se colocar). Salomé se coloca como irresistível, desejada por todos, ocupando o centro absoluto das atenções. Essa autoimagem inflada funciona como mecanismo de defesa, possivelmente como resposta à solidão, ao medo do esquecimento e ao avanço da idade (exatamente como a ditadura parecia estar). O erotismo, em Salomé, não aparece como prazer, mas como instrumento de controle: ela insinua, constrange e provoca. Não é uma sedutora clássica, mas uma provocadora invasiva, que se sustenta mais na erotização do passado do que na presença real de uma senhora de cerca de 70 anos.

Salomé também apresenta uma histeria teatral: fala alto, exagera nos gestos, dramatiza tudo. Remete à histeria freudiana clássica, marcada pela necessidade constante de palco, pelo medo do silêncio e pelo horror à invisibilidade — mesmo em uma personagem que já venceu o tempo. Ela acredita na própria narrativa, ainda que atue silenciosamente nos bastidores.

O nome Salomé, no entanto, não é casual. Ele nos remete simbolicamente à Salomé bíblica, não de forma literal, mas arquetípica. Sua história aparece nos evangelhos de Marcos (6:17–29) e Mateus (14:3–12). ambas as narrativas começam descrevendo como João Batista foi capturado por Herodes por dizer que o casamento de Herodes com Herodias, esposa de seu irmão Filipe, é ilegal (Lev 20:21). Em Marcos, Herodias guarda rancor contra João por isso e quer matá-lo, mas ela se abstém porque Herodes o teme. Em Mateus, Herodes quer matá-lo, mas se abstém porque teme o povo, que acredita que ele é um profeta.  Em ambas as narrativas, Salomé dança em um banquete realizado no aniversário do rei Herodes. Em troca de suas danças agradáveis, Herodes promete que dará tudo o que ela pedir. 

Hans Horions - A dança de Salomé para Herodes 1634

Quando pergunta à mãe, Herodias, o que deve pedir, a mãe a instrui a pedir "a cabeça de João, o Batizador." Quando Salomé pede isso a Herodes, ela acrescenta às palavras da mãe "em bandeja" (Marcos 6:24–25). Chico Anysio subverte essa tragédia em humor por meio do bordão:

“Eu faço a cabeça de João Baptista ou não me chamo Salomé.”


Gustave Moreau, L'Apparition, 1876–77, mostra Salomé



O nome Salomé também aparece no Evangelho de Tiago, texto apócrifo atribuído a Tiago, irmão de Jesus. Nessa narrativa, uma Salomé, incrédula de uma virgem ter dado dado luz a um filho parte para a manjedoura para "inserir o dedo e comprovar a natureza dela" (Maria). Percebendo que ela era realmente virgem, sua mão pega fogo mas um anjo lhe diz para colocar a mão flamejante no neném (Jesus), ao fazer isso sua mão é curada sendo assim o primeiro milagre e fazendo com que Salomé fosse considerada a primeira discípula de Cristo, embora marcada para sempre pelo estigma da incredulidade. mas que ficou marcada como incrédula. Assim como incrédulos estavam todos diante da vontade política de Figueiredo de acabar com a ditadura.


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